a crise mundial do charme em 7 pensamentos sobre o assunto
aqui eu divago sobre o trap do trepa trepa, o "quarto do sexo" da Anitta, o filho do padre do TikTok e mais
em tempos de “glow up”, alguém ainda fala em charme?
ou estamos só eu e o Justin Timberlake sozinhos na sala?
o charme está nos deixando. eu vejo os indícios: não tem mais ninguém flertando em espaços públicos (nem mesmo em cafeterias intimistas, bares de vinho ou na academia) — o frisson acontece por meio de curtidas do “conversante” ou “olhante” nos Stories.
se você quer que alguém se aproxime de você, é melhor calçar um par de meias azuis e torcer pra dar certo. do contrário, você provavelmente só vai ouvir uma sinfonia de grilos.
pior ainda: são cada vez mais raras aquelas pessoas de presença magnética, donas de um não-sei-o-quê que cativa, envolve, vicia. as pessoas charmosas.
o que aconteceu?
talvez o charme esteja morrendo porque ele não pode ser comprado?
ele não pode ser adquirido com as “roupas certas” ou com a linha de maquiagem da Selena Gomez, muito menos com um “corte borboleta” no cabelo ou um skincare de 23 passos.
e, se não se trata de algo que pode ser resolvido com o CVC do cartão Nubank, como buscá-lo? a gente ainda sabe?
1. sobre charme na era da harmonização
eu comecei a assistir The White Lotus só esse ano.
tinha uma vaga lembrança do meme “These gays are trying to murder me” de anos atrás sendo repostado por amigas, mas na época isso não foi o suficiente para me fazer começar.
quando saíram algumas notícias sobre a terceira temporada, fui ficando interessada em acompanhar a dinâmica do trio de “amigas” Kate, Laurie e Jaclyn e resolvi começar a série até alcançar a temporada atual.
bom, onde eu quero chegar com isso?
nessa temporada, a Chelsea, interpretada por Aimee Lou Wood, é uma jovem em um relacionamento com um homem mais velho e emocionalmente indisponível. nada novo sob o sol, mas a escolha da atriz me chamou a atenção.
a beleza dela não parece saída diretamente de uma clínica de estética onde você pode comprar um “rosto Instagram”. é uma lufada de ar fresco.
assistindo a Aimee na série, eu me vi pensando: ela tem seu charme. não ter tentado esculpir seu próprio rosto milimetricamente para alcançar o padrão do momento deu à ela um brilho único.
voltando ao trio de amigas que mencionei: embora Jaclyn seja a amiga famosa e “mais bonita”, é Laurie quem me chama atenção. as cenas dela dançando de forma tão livre que até beira o risível me fizeram pensar “ei, ela é charmosa” de uma forma que a Jaclyn não consegue ser.
é claro que a Jaclyn é bonita. mas é como se ela estivesse tentando tanto ser alguém fora da curva, que “a curva se tornou uma esfera” e ela acabou caindo no lugar comum onde estão todas as outras pessoas que esculpiram os próprios rostos na mesma clínica.
o que me lembra que toda vez que aparece algum Reels mostrando atrizes (ou pessoas do cotidiano) nos anos 80 ou 90 o comentário mais curtido sempre é sobre como “a beleza das pessoas era diferente naquela época” ou “as pessoas eram mais bonitas”.
engraçado, né? nunca antes as pessoas estiveram tão focadas em esculpir seus corpos (com academia, corrida, lipo LED) e seus rostos (com mls de ácido hialurônico e injeções de Botox) e mesmo assim estamos nos distanciando do charme, da sedução, do je ne sais quoi.
tudo se tornou pasteurizado. o mesmo nariz, o mesmo contorno do rosto, as mesmas maçãs, os mesmos lábios, os mesmos “foxy eyes”…
e eu sempre penso, também, que antes as pessoas tinham suas “marcas registradas”. estou pensando na Glória Pires em Mulheres de Areia: o cabelão sedoso e brilhante era o destaque de sua beleza, o adorno que a distinguia.
agora, um cabelo bonito é o mínimo do mínimo se você quer começar a “entrar no padrão”.
vou trazer novamente esse trecho que compartilhei antes na edição “esses 7 textos mudaram completamente a minha relação com a internet” porque sinto que ele explica essa sensação que mistura a saturação do “eu não aguento mais ver tanta gente igual” com o “meh, essa pessoa nem é tudo isso”:
“Deslumbre-me, eles pensam. Preciso de mais. Nunca foi tão fácil ser atraente quanto agora, eles pensam. Você pode fazer todos os procedimentos. Você deveria saber como deixar seu rosto incrível. Por que você não está me fazendo olhar duas vezes? Por que você não está se destacando? Por que você não parece um alienígena?
Alienígena pode ser o que é preciso para se destacar na era brain rot do padrão de beleza. Todas nós deveríamos estar fazendo skincare, maquiagem, seguindo tutoriais e fazendo procedimentos como o “básico” necessário para estar “na média” — quando grande parte da nossa cultura acontece na esfera digital e visual, como isso poderia parecer algo além de uma ordem para muitas de nós? Para superar o "genérico", uma pessoa tem que parecer incomum, sobrenatural, quase assustadoramente bonita” (Trad. livre).
2. sobre charme nas noites dançantes
há quase uma década (!), sair pra dançar era sinônimo de diversão absoluta para minhas amigas e eu.
muitas vezes nem lembrávamos de colocar uma gota de Catuaba (!) na boca, porque a sensação de dançar conforme a batida enquanto uma luz piscante fazia com que sumíssemos e reaparecêssemos era inebriante o suficiente.
era elétrico. suadas, descabeladas, nós pulávamos e rodopiávamos com passos nascidos da nossa cabeça, mesmo, tentando acompanhar o ritmo.
quando conseguíamos, era como entrar em um delicioso “estado de fluxo”.
sim, já existia o Daniel Saboya e o Fitdance e de vez em quando rolava quase que um Flashmob com a balada toda tentando acertar a coreografia, mas isso não era frequente.
corta pra 2025: nas minhas últimas experiências assistindo pessoas em festas eu presenciei, em primeira mão, que só dançava quem sabia a coreografia.
e, pasme, a coreografia consistia em replicar uma dancinha do TikTok ao longo da música.
eu sou muito afeiçoada à dança, acho um charme quem gosta de dançar, e essa cena não me causou… nada. era como se eu estivesse assistindo um pedaço de papelão se desfazer na água.
esse era o nível de sexy do que eu estava presenciando. as pessoas agora tem vergonha de errar o passo!!! de não saber a coreografia!! de dançar mesmo sem saber!!
e eu acredito seriamente que isso está contribuindo para um mundo menos charmoso.
porque o charme, afinal de contas, está na vulnerabilidade de errar aquele passo e dar uma risadinha, dizer “opa” e voltar a dançar, ou gargalhar com as amigas, ou inventar um outro passo pra aproveitar as próximas batidas.
o charme mora na capacidade de se expor sem medo.
3. sobre charme que dá pra vender
eu comecei o texto falando sobre The White Lotus, mas, na verdade, a semente para essa edição veio do trap do trepa-trepa. lembra desse hit? durou, sei lá, uma semana.
o ocorrido envolveu a Heloísa Périssé e sua filha, Luísa, que, se apresentando como “MC Perisseta”, arrancou gargalhadas com sua música nesse episódio do Pé no Sofá Pod.
a cena divertida viralizou, ou seja: tomou os “perfis de fofoca do Instagram”, chegou na casa dos milhões no TikTok, foi replicada, recombinada, repostada, meme-ficada…
mas, ao invés de deixar o meme ir descansar em paz no Paraíso dos Memes, o trap do trepa trepa foi produzido, a sério, e lançado nas plataformas de música. cortesia do Dennis DJ.
cansativo isso, não? qualquer coisa engraçada ou charmosa que alguém faz é repetida e dissecada online à absurda exaustão e culmina em uma marca lançando um produto relacionado ou em algum social media tentando se apropriar daquilo usando a “voz da marca”.
ah! aliás, lembra do “filho do padre” do TikTok?
o rapaz, depois de viralizar por ter uma aparência minimamente interessante e ser filho de um padre em tempos de Fleabag, chegou a trancar o curso na faculdade para se concentrar em sua nova carreira depois de ganhar centenas de milhares de seguidores no TikTok ter um artigo escrito sobre ele no “O Fuxico”.
ele mal imaginava que a imagem de quem viraliza tem data de validade e é curtíssima.
espero que ele tenha voltado pra faculdade. de verdade. alguém aí sabe se o filho do padre do tiktok voltou pra faculdade???
a questão central aqui é que, em tempos de viral e de parceria com marcas, o charme é dissecado, incorporado, explorado até se esvaziar de sentido, se tornando, então, um produto, um simulacro do que antes representava: humanidade, espontaneidade, vulnerabilidade.
4. sobre charme e Anitta
quando eu vi uma imagem do “quarto do sexo” da Anitta eu fiquei meio sem reação por alguns instantes.
os beijinhos de neon, os símbolos “masculino” e “feminino” tal qual um banheiro de shopping, a cadeirinha de pelúcia…
tipo, esse comentário resumiu tudo:
comentário esse, aliás, que li na análise da Laurinha Lero sobre o documentário da Anitta. ela descreve o local com uma frase certeira: “(…) É um tesão esquisito, higienizado. Uma putaria meio Tok&Stok”.
o trecho acima me fez lembrar da leitura “Selling Sex, Losing Touch: How Gen Z Performs Sexuality Instead of Feeling It” que ficou ecoando na minha cabeça por alguns dias e complementou meu raciocínio.
Tradução livre abaixo:
Esse dilúvio de imagens sexuais se divorciou da sexualidade, tornando o que costumava ser performances privadas de sedução em algo completamente anestesiado. (…) O que resta é uma recessão de excitação e uma população de jovens incapazes de impressionar uns aos outros em comparação com o que é facilmente acessível a eles online (…) A cultura é hipersexualizada e favorável aos pervertidos, mas carece de sedução, sensualidade ou intimidade.
é isso.
estamos cercados de imagens sexualizadas, mas tudo parece tão antisséptico.
é uma sexualidade sem fluidos, posada, Facetune-zada, amaciada por uma camada de filtro Paris.
feita em laboratório, sem calor humano. feita pra vender, performar.
pública, e, talvez por isso, tão pouco íntima.
sexual, mas não-sedutora.
sem charme.
5. sobre charme ensinado
às vezes eu sinto que estamos todos meio aquela cena de Fleabag quando ela diz pro padre que precisa que alguém diga a ela o que vestir, o que comer, o que gostar, o que odiar.
até nossa espontaneidade parece calculada: o Story “despretensioso” que leva 15 minutos pra ficar pronto, a leitura do mês que é a mesma da Dua Lipa ou do Thimothée Chalamet em algum clique de paparazzi.
para se portar em um relacionamento as pessoas passaram a emular dicas de “gurus” do TikTok, e, para conquistar alguém, buscam emanar “energia feminina” (??) ao invés de só… ser elas mesmas? e ver se isso dá certo com a outra pessoa que também está só sendo ela mesma?
um dia apareceu isso aqui no meu Pinterest:
chegamos ao ponto de perguntar a alguém, que não nos conhece, o que escrever num bilhete para a pessoa amada?
até a arte dos bilhetinhos escritos à mão (um charme) está sendo assassinada pela conveniência de mimetizar alguém que consideramos um exemplo a ser seguido.
pela sensação de segurança que mora em imitar alguém “que sabe o que está fazendo”.
pelo medo de tentar ser quem se é e “fazer errado”.
6. sobre charme e conveniência
a conveniência de comprar online, o pós-pandemia, a facilidade em realizar qualquer coisa sem precisar perguntar nada a ninguém…
nos tornamos autossuficientes, grandes protetoras da nossa paz, focadas em construir nossa “melhor versão”.
porque tudo isso é muito mais conveniente do que se jogar na vida como quem pula de bungee jump, dando a cara a tapa, sendo vilã de algumas histórias e vítima de outras, perdendo amizades, rompendo relacionamentos, tendo brigas homéricas e indo dormir chorando.
alteramos nosso foco para aquilo que podemos controlar nos mínimos detalhes: nosso corpo, nossa alimentação, nossa rotina.
um “culto ao eu” que na verdade esconde muito medo de ser vulnerável e de ser vista tentando, falhando, perdendo, passando vergonha, sendo breguíssima e cafonérrima.
é mais conveniente fazer o que todo mundo está fazendo.
é mais fácil agir como todo mundo está agindo.
é melhor seguir o fluxo.
confortável? sim. conveniente? também. a moeda de troca é o charme que pertence exclusivamente a você. aceita?
7. reencontrando o charme
o charme é, antes de tudo, pautado no efêmero e centrado no intangível, penso eu.
ele mora no jeito de olhar que dura alguns segundos, na forma como alguém arrumou o cabelo naquele dia, no toque inesperado em meio à uma crise de riso dupla.
ele está no jeito como aquela pessoa conserta algo seu que quebrou com destreza, na maneira como alguém te explica um assunto com tanta paixão que aquilo se torna magnético.
ele pode ser encontrado ao subir no ônibus, passar a catraca, e ver alguém lendo o seu livro favorito.
ele se esconde na quebra de expectativas ao descobrir que aquela pessoa super séria do trabalho coleciona sapinhos de biscuit.
charme nada mais é que uma forma de navegar o mundo sendo fiel à si mesma, sem precisar se esconder ou evitar situações por não saber “a forma certa” de agir, se portar, se vestir.
é honrar seus erros, seus micos, suas frases que saíram sem sentido, sem achar que isso te torna menor.
o charme pode ser exercitado:
quando você puxa assunto com alguém que não conhece direito.
quando você usa uma blusa que achou no armário da sua mãe e amou, mesmo sendo de uma cor que está fora de moda.
quando você escuta alguém com interesse genuíno ao invés de só esperar sua vez de falar também.
quando você escreve o maldito bilhetinho de “feliz Natal, eu comprei isso pra você porque…” sem precisar pedir dicas à uma influenciadora de relacionamentos.
seu charme está te esperando.
no desconfortável. no imprevisível. no não-replicável. na verdade.
recupere-o, por favor, eu e o Justin T. imploramos.
por hoje é só! obrigada por ler até aqui <3
você também sente que o charme está em extinção? como você exercita o seu?
me contaaaaa:
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um bjo, um qjo e até a próxima.
sua newsletter é a mais charmosa desse site, que presente ter o prazer em ler seus pensamentos!
que texto bommmm e que análise certeira!! realmente, o consumismo e as redes sociais são o mal do século. canalhas, roubaram até nossas pessoas charmosas! pela volta do charme em 2025!