será que a gente precisa proteger nossa paz tanto assim???
7 pensamentos sobre amizade, vigilância, inconveniência e essa tal paz.
nós estamos protegendo a nossa paz, ou estamos apenas evitando qualquer tipo de inconveniência, desconforto ou conflito?
somos mesmo amigas dessa pessoa, ou só reagimos com “😍” aos Stories dela e vice-versa?
nós ainda sabemos existir em comunidade, ou estamos cada vez mais intolerantes a tudo que vem do “outro”?
e qual o nosso papel na ausência de comunidades autênticas?
tá tudo tão estranho. e eu meio que culpo o fim das comunidades do Orkut.
então… senta que lá vem textão
1. “ah, mas as comunidades digitais”… pode ir parando por aí.
você realmente faz parte de uma comunidade ou apenas compra os mesmos produtos que um determinado grupo e deixa comentários nas fotos de uma mesma influenciadora?
“Uma comunidade ATUAL, que opera no novo formato é o 5 am Club - todo mundo acorda 5am, lê Café com Deus Pai, toma mátcha, faz sua yoga/meditação caseira, vai pra Velocity, depois pra faculdade trabalho… rotinas orquestradas na mesma sequência, e com os mesmos elementos: a garrafa Pacco, o livro, o Super Coffe” (…) “De fora, dos milhões de vídeos, parecem uma unidade. Mas essa comunidade NUNCA CONVERSOU ENTRE SI. Eles performam a mesma realidade, mas mal trocam comentários uns com os outros. Eles se reconhecem por seus símbolos.”
(“Pertencer nunca custou tão barato (ou tão caro)”, do The Spritz Hunting Club).
as comunidades digitais, de verdade verdadeira, estão em extinção.
muito disso aconteceu porque o marketing se apropriou dessa possibilidade e transformou marcas em espaços onde as pessoas sentem que fazem parte de algo maior e estão conectadas umas às outras? claro que sim.
as redes sociais reconfiguraram seus formatos e modos de funcionamento, reduzindo os espaços onde uma comunidade poderia se formar efetivamente? isso também.
mas não podemos esquecer que hoje estamos vivendo a hegemonia do Instagram e TikTok. isso significa que outros espaços (como os fóruns virtuais) foram, pouco a pouco, minguando até acabar.
e o que temos pra hoje é o que a Meta e a Bytedance quiserem.
seja em termos de formato, algoritmo, modo de operação…
e o que eles querem é simples: que as redes sociais se tornem vitrines para o consumo. a parte social não importa mais.
eles não querem isso aqui:
eles querem uma borracha viral desejada por todas as “garotas Rory Gilmore” com direito a cupons de 10% OFF de influencers. querem mais e mais marcas lançando seus anúncios e os pagando para veiculá-los. querem “prêmios de seguidora mais engajada” que te fazem sentir próxima daquela marca ou creator mas na verdade são só um boost de engajamento e métricas.
nada nas redes sociais hoje é feito pensando em criar comunidades.
a possibilidade de responder ao story da sua amiga com um mero “😍” automático ao invés de efetivamente escrever “amiga, vc ta linda demais! amei o look” prova isso.
até o Whatsapp, nosso “app de comunicação” agora possui essa opção de reagir às mensagens para não precisar respondê-las.
e é nessa mudança de lógica, nessa transformação de como as coisas operam, que, em algum momento, tudo mudou.
mas eu acredito que podemos nada contra a maré. agir de outro jeito. usar as ferramentas de outra forma. porque sou uma big-time believer.
2. os resquícios do distanciamento social e o outro como um estranho
eu sei que os termos “novo normal” e “pós pandemia” já foram dissecados à exaustão.
mas pensa comigo: fazem apenas 2 anos desde que a OMS comunicou o fim do estado de emergência global, depois de três anos pandêmicos.
os impactos sociais (como a propensão ao brainrot, a dificuldade em socializar, o incômodo que o outro causa…) só estão começando a ser notados agora.
eu lembro de ver pessoas falando que a humanidade “sairia dessa” muito mais “unida e evoluída”.
consigo entender a lógica: afinal, um momento de tanta fragilidade e perda deveria inspirar a noção do que importa verdadeiramente — conexões genuínas, abraçar pessoas amadas, rir com entes queridos…
mas parece que nos acomodamos até demais dentro do casulo do Eu. estamos ainda mais individualistas, imediatistas, distantes do outro.
não sabemos o que o outro realmente pensa de nós, não temos controle de como somos percebidas por ele, e isso incomoda. frustra. assusta. distancia.
a gente quer proximidade, claro que sim: mas nos nossos termos. queremos ser percebidas de acordo com a curadoria que criamos para representar nós mesmas.
não queremos correr o risco de ser mal interpretadas. estamos tão absortas em nós que o “pós-rolê” se torna, para tanta gente, um verdadeiro jogo Detetive onde o objetivo é encontrar fraturas na fachada cautelosamente construída por si, relembrando tudo o que foi dito ou feito que possa ter parecido “ruim”.
e é claro que isso vai ser exaustivo.
3. amizade ou vigilância?
não me leve a mal. apesar das minhas constantes críticas, eu amo a internet. eu amo computadores. eu quase cursei Ciência da Computação.
e, como pessoa que ama a internet e está há muito tempo nela, eu tenho muitas amizades virtuais.
algumas eu conheço pessoalmente, outras não; algumas já foram amizades presenciais e hoje só consigo ver uma ou duas vezes por ano.
talvez por isso eu considere “manter amizades” uma arte.
porque não basta comentar nas fotos do Instagram. não basta enviar memes e dizer “nós”.
é preciso um esforço consciente e constante para fazer parte da vida daquelas pessoas.
não pular os stories quando elas fazem vídeos no Close Friends contando alguma coisa que aconteceu. elogiar um novo corte de cabelo. pedir a receita da comida linda que elas postaram. perguntar “e as novidades?” e ter genuína vontade de saber o que realmente está rolando na vida daquela pessoa, para além do que é postado.
é sobre prestar atenção, mostrar que se importa e tentar reduzir as distâncias sempre que possível: tá todo mundo na correria, mas por que não fazer uma chamada de áudio ou vídeo uma vez por mês? ou combinar de assistir a mesma série e ir comentando por Whatsapp?
porque, se tudo que você faz é assistir os Stories das suas amigas e deixar um ou outro “like”, isso não é amizade: é vigilância.
“A acessibilidade através das redes sociais te leva à uma sensação conflitante de proximidade e distância, porque mesmo que você sinta que está por dentro, na verdade não está. Então, em vez de ligar para as pessoas com quem você quer falar, o telefone fica mudo dos dois lados”. (...) “Posso ser sincera? Eu nem me importo em saber sobre metade das coisas que aparecem enquanto rolo o feed. Eu me importo em saber o que as pessoas querem me dizer. Porque é importante para elas. Porque pensaram em mim. Porque nosso relacionamento é nosso. Eu anseio por interações que não sejam vigiadas e transformadas em uma chance de lucrar pelas grandes empresas de tecnologia. Eu anseio por bate-papos que exijam mais do que uma rápida passada de dedo. Eu anseio por brincadeiras e falar bobeiras em voz alta. Eu desejo relacionamentos livres da natureza de ficar olhando só por olhar.” (tradução livre do texto “Surveillance is not friendship”, de From The Notes App).
4. tudo é inconveniente quando se está tão focada em si mesma
eu sou uma consumidora ávida de “The Real Housewives of Beverly Hills”, mesmo que todas elas sejam insuportáveis.

bem, em um dos episódios da 10ª temporada (disponível na Netflix), um grande caos se instaura quando as Housewives vão ao evento coach de uma delas, que começa cedo pela manhã, para “dar suporte” e “apoiá-la”.
o grupo participa das atividades do evento ao longo do dia, que incluem lutar boxe ouvindo palavras motivacionais e fazer uma meditação guiada.
horas depois, elas estão se preparando para jantar (a última parte do evento) quando a housewife Dorit aparece, super produzida e vestida como uma instrutora fitness dos anos 80.
ao ser questionada quanto ao motivo de não ter aparecido antes para apoiar a amiga, ela responde: “eu tenho uma vida”.
depois disso aí é ladeira abaixo e começa uma briga que dura uns três episódios.
tá, mas onde quero chegar com isso?
é que eu tenho a impressão de que tá todo mundo meio Dorit das ideias.
todo mundo buscando a “melhor versão de si mesma”, e parte dessa busca está em se “priorizar” ao máximo.
planos são facilmente canceláveis: ficar fora até tarde e perder o horário de correr pela manhã? não, obrigada.
qualquer inconveniência ou situação “fora de rota” atrapalha e deve ser evitada sem culpa: afinal, você está supostamente se priorizando, criando limites e protegendo a sua paz.
mas será mesmo?
5. a paz mais frágil do mundo
não existe amizade sem inconveniência.
mais do que isso: não existe vida sem inconveniência.
estar viva e existindo nesse mundo é estar sujeita a encontros, desencontros, casos e acasos:
é sair sem guarda-chuva e ser pega de surpresa por uma tempestade no meio do caminho.
é passar horas numa fila de espera pra descobrir que tá faltando um documento e não vão poder te atender.
é passar o dia sonhando em chegar em casa e comer o doce que está na geladeira pra chegar e perceber que já tinha comido no dia anterior.
é impossível proteger sua paz.
a gente precisa conseguir ter conversas difíceis, lidar com términos (de amores e de amizades), brigar (estando certa ou errada).
não dá pra passar pelo mundo ilesa, sem nunca ter se desentendido com ninguém na vida.
especialmente com amigas.
muitas vezes vocês não vão concordar. vão trocar farpas. vão brigar. isso vai custar sua paz, mesmo que por alguns momentos.
mas o espaço pro diálogo existe, e é muito mais agregador superar dilemas do que evitá-los a todo custo.
6. ratinha do campo, ratinha da cidade: o que eu aprendi
por motivos maiores que eu, há cerca de um ano e meio moro em uma cidadezinha do interior de Minas Gerais.
e aqui eu presenciei, diante dos meus próprios olhos, um senso de comunidade pré-digital.
certo dia eu estava voltando para casa, à pé, com uma quantidade indiscreta de plantas e mudas numa caixa de papelão.
um casal mais velho passou por mim e disse: “oba, fez a festa hein!”. eu fiquei assim 👁👄👁 por alguns segundos até responder com um desajeitado “é, pois é, rs”.
eles continuaram: “não está pesado, não? quer uma carona até sua casa?”.
a música de abertura de Law and Order: SVU começou a ecoar em algum canto do meu cérebro instantaneamente. se tem uma coisa que eu aprendi com a detetive Benson é que o sequestro está sempre a um convite de distância.
eu, ratinha da cidade grande, comecei a ficar nervosa, respondi que não precisava e agradeci.
ao longo do caminho, apressando o passo, percebi que aqueles rostos eram familiares. o casal morava ali perto e eu sempre os via sentados na porta de casa. eles estavam me vendo, também.
outra vez, uma mulher que estava com a filha atrás de mim na fila do supermercado me ofereceu carona ao perceber que eu ia voltar a pé. mais uma vez, neguei.
ainda é estranho pensar que não sou só mais um rosto na multidão apressada.
que as pessoas podem até não saber meu nome, mas me reconhecem.
que, se eu permitir, elas podem vir a me conhecer.
e que eu posso fazer parte da comunidade também, se quiser.
mas, pra isso, eu preciso aceitar o desconforto de não saber o que falar, como agir.
eu preciso aceitar ser uma inconveniência que vai tirar a pessoa do caminho dela.
e preciso aceitar a inconveniência alheia de braços abertos, também.
aos poucos, estou aprendendo.
esses tempos minha professora de pilates comentou que tinha uma casa pra alugar ali perto, que ela queria ver, mas que ficava desanimada de ir sozinha.
qual não foi a minha surpresa quando me ouvi dizer: se quiser, podemos ir juntas!
foi esquisito andar com ela na calçada estreita. não sabia sobre o que falar no caminho, nem o que fazer com os braçis. foi estranho vê-la fora do ambiente que eu já estava acostumada.
mas fomos. e descobrimos que a casa já tinha sido alugada. ela ficou meio chateada, eu não sabia o que dizer e falei que quando essas coisas acontecem é pra abrir espaço pra algo ainda melhor.
voltamos.
percebi que pra fazer parte de uma comunidade, você precisa se esforçar também.
7. e talvez o segredo seja esse
construir qualquer coisa demanda ação, intenção, atenção, esforço.
especialmente quando se trata de construir uma comunidade.
é preciso se abrir ao não-planejado. ao que você não queria. puxar papo. falhar. ser meio ridícula. fazer uma piada que ninguém entendeu.
fazer um esforço extra. dar um passo a mais. aceitar que o processo é desconfortável e inconveniente.
é pra ser assim mesmo. não é Disney.
minha mente ainda está borbulhando com esse assunto…
mas por hoje é só! quem sabe vem aí uma continuação. e você, o que pensa disso tudo?
leia sete coisas sobre outros assuntos clicando aqui :)
um bjo, um qjo e até a próxima.
Nossa eu amei esse texto! Me identifiquei em muitos momentos!
Eu tenho amigas que se mudaram para longe e adotamos o uso de cartinhas, (sim, enviadas pelo correio) em datas especiais para marcar com materialidade os momentos. Também fazemos vídeo chamadas de bate papo pra saber da vida, das dificuldades, dos pormenores. E não apenas curtir a foto bonita. Aliás eu tô cada dia mais contra essa coisa que fica um grande teatro de cada um fingindo que tá tudo bem. Tem uma delas que hoje, longe, a gente consegue ter conversas super profundas, porque estamos nutrinfo essa relação!
Minha vó dizia que pra conhecer alguém a gente tinha que comer 1Kg de sal juntos: não dava pra ser rápido! E cuidar das amizades e relações é isso, ir regando sempre. Que esse texto possa chegar em mais pessoas!
VIVENDO POR ESSE TEXTO aaaaa conseguistes dizer muito do que eu mesma penso, tbm!
vou até comentar por tópico:
1. comunidades digitais - SIM, muito do que as pessoas acham que é comutar no digital é só marketing e tem bastante estudo pra isso e técnica! existe profissão de Community manager, só pra isso mesmo, pra coordenar comunidades (que muitas vezes elas mesmas juram ser "orgânicas" :o
2. distanciamento social
acredito MUITO que as pessoas também, por serem microanalisadas e também microanalisarem, têm medo de serem cringe ou parecerem tal. esse medo tá fazendo com que a gente se isole ainda mais, e esse império do "eu" combina total com o primeiro tópico!
3. amizade ou vigilância
REAL. as pessoas cederam ao modelo industrial de interação das redes e agora muita amizade se reduziu a isso... eu como pessoa naturalmente mais afastada dessa coisa toda social não sinto tanto, mas também não ajo como os exemplos que vc traz por ex; eu acredito que mesmo tendo dificuldade, eu tento interagir de verdade com minhas amizades mesmo no virtual porque é preciso! a gente precisa tbm se esforçar...
4. tudo é inconveniente
SIIIM. e isso volta pra o império do eu também né? todo mundo tá ocupado demais, focado demais... que esquece que social, conexão, comunidade e comutar tbm faz bem pra gente, mesmo num nível pessoal e individual. se as pessoas conseguissem ao menos se curarem individualmente pra compartilharem depois essa jornada... mas não é o que acontece, e realmente, depois que se inventou o "poxa tô ocupada demais com o trabalho + academia + igreja pop + sei lá o quê" as pessoas se ignoram sem remorso pq juram que estão melhores assim.
5. paz frágil
"não dá pra passar pelo mundo ilesa, sem nunca ter se desentendido com ninguém na vida." acho que junto com a pandemia a gente diminuiu a capacidade de nuance também... e sem essa nuance parece que tudo tem que ser perfeito, ou sem percalços no caminho, sem nada, principalmente nas relações. deus me free viver numa relação totalmente higienizada de humanidade! mas as pessoas por aí estão fazendo isso, realmente não entendo como
6. campo e cidade
"mas, pra isso, eu preciso aceitar o desconforto de não saber o que falar, como agir.
eu preciso aceitar ser uma inconveniência que vai tirar a pessoa do caminho dela."
PERFEITOOO! eu tento praticar MUITO isso, e tendo a dificuldade do autismo tudo é bem mais difícil nesse sentido mas eu tento dançar essa dança; claro que se alguém for inconveniente ultrapassando totalmente algum limite muito inegociável, vou dar um chega pra lá; mas a vida tem disso, esses encontros, e neles que muitas vezes surgem relações de coleguismo, amizade... precisamos abraçar isso - ou se não quisermos, pelo menos não reclamar no xuitter que ninguém mais quer se conhecer kkkkkk
7. o segredo
eu acho que é sim esse o segredo. é saber navegar isso tudo compreendendo mas também tentando ser compreendida... fazendo mas tbm ajudando outros a aprenderem pra fazer tbm... uma espécie de troca que cada vez mais está sendo sufocada. babado...........
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mais um texto e edição incríveis! essa estrutura de tópicos eu acho sensacional no sete coisas, e nesse assunto parece que ficou ainda mais cristalino pro tema que vc traz - aliás, muito importante... como que as pessoas tanto reclamam de solidão social, de falta de comunidade quando nem tentam, sabe? intrigante pra dizer o mínimo. e vc traduziu tudo isso!